O despertador tocou e precisávamos levantar naquela manhã fria de domingo, na Alemanha. No quarto de hotel, tomei um chá e comi alguma coisa que tínhamos das compras no supermercado.
Vesti uma bermuda que tinha zíper atrás, onde eu guardei um gel de carboidrato. A camiseta que escolhi era de manga comprida. Boné, Garmin, cinta do frequencímetro, meia, tênis, número de peito. Eu estava pronta. A sacola com uma troca de roupa para o pós-corrida já estava separada.
Todos prontos. Já no elevador, encontramos um alemão que também estava indo para a maratona. Apesar de termos visto mapas e pedido explicações, foi mais fácil segui-lo...
Saímos do hotel e, para nossa alegria...
"Chovia. Chovia uma triste chuva de resignação"
(verso do "Poema só para Jaime Ovalle", do Manuel Bandeira)
Resignada, saquei da sacola minha capa de chuva.
Seguimos o corredor alemão até a estação de metrô mais próxima dali. O transporte público era gratuito naquele dia para todos os inscritos na maratona de Düsseldorf. Acontece que, além do meu pai e do meu irmão, estávamos com a Ana, espanhola que meu irmão conhecera no intercâmbio e se juntara à nossa trupe dois dias antes, em Düsseldorf. Precisávamos comprar um bilhete de metrô para a Ana e não encontramos o lugar... Bem, ela estava com a gente e estávamos com pressa... o alemão que estávamos seguindo disse que naquele horário, por causa da maratona, não teria problema... E ele coroou a manhã com a frase: "No risk, no fun!" Não esquecemos mais (até porque saiu da boca de um alemão - de quem temos uma ideia de maior rigidez).
Passadas algumas estações, nosso novo amigo alemão disse para continuarmos e descermos na próxima, porque ele sairia ali para encontrar alguns amigos. Continuamos e seguimos outros passageiros com números no peito. Uma legião de encapuzados foi se reunindo. Todos procuravam abrigar-se um pouco daquela chuva, mas chegara a hora de guardar os casacos e capas no guarda volumes. E assim, não só as meias e os tênis, mas também nossas roupas começaram a ficar mais frias e pesadas.
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meu irmão Lucas, prestes a debutar na maratona + eu + meu pai José Reynaldo, prestes a correr sua 13a. maratona |
Caminhamos para a largada. A Ana teve tempo de tirar algumas fotos da gente. Ela me esperaria no km 21.
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Na grade lateral, momentos antes da largada, muitas pessoas abandonavam suas capas e agasalhos. |
Eis que a prova se inicia e os primeiros passos não encontravam espaço. Uma multidão nos cercava e correr era quase impossível.
O Marcão disse que eu não devia correr com meu pai e meu irmão, porque eles correriam os 42km, sendo que a segunda metade deles seria mais rápida que a primeira e eu correria apenas a primeira, e estava lá para buscar um recorde pessoal nos 21km.
No começo, meu pai foi me segurando, mas com 1,5km eu já criara asinhas nos pés e eles queriam voar mais rápido! Chegara a hora de eu seguir em frente, sozinha. Despedimo-nos e alcei meu vôo por entre diversos outros corredores.
Ainda havia muita gente aglomerada e eu ia me embrenhando pelos espaços vazios. Meu Garmin estava coberto com a manga comprida da camiseta e a proposta era exatamente não olhar nenhuma vez para ele. É claro que desde quando constatei que choveria do começo ao fim da corrida, fazendo tênis e roupas pesarem mais, eu já estava relevando aquela ideia de diminuir o tempo. De qualquer forma, eu já estava lá e, com ou sem recorde pessoal, eu decidi que aquele momento seria para me divertir.
Chovia e fazia frio, mas os quilômetros chegavam e passavam logo. Eu estava sozinha no meio de muitos estrangeiros e diferentemente de outras provas que corri no exterior, dessa vez eu não compreendia nenhuma frase que era dita ou que estava escrita nos cartazes exibidos por aquela gente que torcia nas ruas.
Não fosse por isso. Não deixei de festejar! Aqueles corredores ao meu lado estavam inscritos para os 42km, e como eu correria a metade disso, me sentia apta a fazer certas extravagâncias (das quais eles deviam se poupar) como: levantar as mãos para o alto, bater palmas, bater nas mãos dos torcedores, e gritar: "BRASIL!"
Às vezes sentia que um ou outro corredor olhava pensando: "Por que ela não poupa esse ânimo?" e muitas vezes me peguei pensando o quanto gostaria de explicar para eles que eu pararia no km 21, portanto, que não se preocupassem comigo ou que não se incomodassem se eu estivesse deixando alguns deles para trás! Deixei para trás um tão lindo com quem eu teria casado! rs. Percebi que ele queria ter me acompanhado, afinal, muitos homens não gostam muito de serem ultrapassados por mulheres! Mas, eu realmente não estaria naquele ritmo se fosse para encarar a maratona inteira!
Apesar disso, 21km era uma distância considerável e seria bem complicado clarificar a mente de pensamentos por todo aquele percurso. Acontece que todos os pensamentos me vinham à cabeça em outras línguas. Lá estava eu falando comigo mesma em pensamento, em inglês, em espanhol e até algumas coisas em francês. Por que cargas d'água? Bem, acho que era o espírito da viagem!
Lá estava eu, correndo de km em km no meio de desconhecidos. Dentre eles, marquei alguns que estavam sempre por perto. Um casal em que a mulher usava uma blusa rosa. Outro homem também estava sempre por perto, com uma blusa azul quase como quadriculada com tom de coral. Eram cores marcantes e eu decidi que não me afastaria muito dessas pessoas. Adotei eles como parâmetro para possivelmente estar mantendo um ritmo, que eu nem imaginava qual era.
O percurso era bem plano e isso facilitou muito a vida. Sempre que surgiam postos de hidratação, eu pegava um copinho de água, tomava os básicos 2, 3 golinhos e jogava o resto, para não ficar com o estômago pesado.
Me distraí algumas vezes e perdi uma ou outra plaquinha dos quilômetros e não queria perder a do 21. A essas alturas eu já havia pisado em poças caprichadas pra completar o enxarcamento do tênis. Eu queria chegar logo e comecei a perguntar se a marcação do 21 estava mesmo à frente. Conversei com um casal que me assegurou que ainda passaríamos pela metade. Contei que eu pararia ali e eles disseram que eu estava muito bem e que provavelmente conseguiria completar os 42 se quisesse. Fiquei um pouco tentada, confesso. Mas, eu não havia treinado como para minha maratona e eu não queria me arriscar a ter qualquer complicação ou lesão por um simples capricho de superação.
A marcação da metade da prova deles que seria a minha linha de chegada estava próxima. Então me despedi daquele casal simpático e fui "cruzar" a chegada que eu me determinara. E ela estava ali, junto do tapete que conectava-se ao chip, marcando meu tempo oficial para aquela distância. Pisei, levantei os braços em uma comemoração particular e logo bati no stop do Garmin. 1h55 e uns bons quebrados, mas que me mantinham abaixo da minha marca pessoal para os 21km de 1h57 e outros tantos quebrados!
Mãos e coração ao alto! E chovia. Chovia uma alegre chuva de bênção e satisfação.